sexta-feira, 24 de julho de 2009

Casca de árvore

Eu era casca de árvore velha. Vi coisa demais, endureci pelo tempo, agüentei chuva depois de chuva de invernos molhados, enfrentei sois de verões que quem sabe um dia qualquer um que me lê verá, mas vi a primavera e os passarinhos que se não voam, no lugar, piam, e não vi as folhas caírem pela tela da tevê.
E as cascas das árvores caem sem tocar o solo. Elas criam asas como os passarinhos que nelas fazem ninhos, e flutuam como as vozes ininteligíveis que atravessam o campo, para o sol poente, onde ousam descansar sem queimar, vozes estranhas...
Mas as cascas de árvore também têm cicatriz. Os corações chamuscados de verões passados já lhe feriram e deixaram ali as pegadas. Abrem-se veios a golpes de caneta na casca e registram-se ali, acumulam pólen caído das flores lá em cima e de vez em quando alguém passa os dedos por eles, contornando suas formas, fazendo cócegas, fazendo voltar àquela imagem de cicatriz aberta.
A casca de árvore olha aquele doce jardim. São tantas flores que aqueles corações marcados já mandaram. E na casa da árvore alguém habita. Uma luz acesa passa pela janela e ilumina uma simples flor branca lá em baixo.
Eu era uma casca de árvore que, agora, casa.

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Agradecimentos especiais a Aghny que não me deixa errar.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Poesice

– quem é você?
– eu sou um poeta...
– que desaforo! Com o que ousa?
– perdão, eu não pretendia...
– tudo bem, eu sei, com o mar...
– na verdade com o vento também...
– pobre homem...
– é, mas há pior, com a cidade também...
– sinto muito...
– eu também...
– há remédio?
– já tentei todos, mas todos me curam...
– e tratamentos alternativos?
– não, obrigado, mas foram os que melhor funcionaram...
– e por que parou?
– me entorpeciam.
– entendo...
– e me fizeram rasgar algumas nuvens...
– que horror!
– deixá-las pela metade não é nem a metade...
– o senhor poderia ser preso!
– se fosse, eu fingiria desprezo...
– seria uma boa saída. Já pensou em jogar o relógio fora?
– eu não poderia, é ele que me mantém vivo.
– já pensou em amar?
– isso é um insulto?
– não, é uma oferta...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Vie

Vivi.
Vivi?
Sim, afirmo veementemente que vivi e não vivi apenas uma vez. Eu sei, eu sei, ao homem foi destinado viver apenas uma vez nessa terra, mas a vida é uma que não se destina apenas a seguir à diante junto com o mundo, ela é o próprio mundo que inventa. Cada vida inventa um mundo de vias e vidas.
A primeira vez que vivi, achei que era imortal e esse foi o erro que fez com que a velhice chegasse cedo, não o único, de certo, mas certamente o mais habitual. Deixei de fazer aniversários por falta de números no infinito.
Foi então que morri. Morri a primeira vez em um aeroporto. E o mais engraçado: fora do avião, morri sem sentir frio na barriga, morri com um toque de recolher triste que me mandou para casa muito cedo. Minha primeira morte foi selada com lábios de despedida.
A segunda vida veio prematura. Cinco meses. Negou incubadora como se aquilo fosse a prisão que um dia negara para todas as vidas que teria. Não resistiu ao primeiro aniversário, morreu de prematuro traído pela própria mão que o alimentou na gestação, desnutrido e fraco, depois de uma ou duas reanimações no mesmo dia, mas seu pulso já lento parou de pulsar.
Minha segunda morte teve epitáfio de giz. Apagou na primeira chuva.
Depois, já por volta da tenra idade dos cento e quinze anos, voltei a viver, ou achei que havia voltado a viver, talvez um meio termo entre a vida e a morte como deitar-se sem dormir, ou adormecer em pé, talvez, como amanhecer no escuro.
O peito bateu duas ou três vezes, subiu e desceu mostrando sinais de respiração, mas nem ao menos chegou a viver de verdade, morreu sem viver como os velhos ranzinzas.
E agora, espero a próxima vida germinar e a cultivo com o cuidado de um fazendeiro que perdeu todas as sementes na última enchente.
Espero uma vida com raízes em gancho.
Espero o leve sapateado das folhas ao vento...

Igor Chacon, Natal, mês de dezembro do ano do Senhor de 2104