sábado, 6 de novembro de 2010

Telepático Amar




Depois de cinquenta anos juntos eles perceberam que não se apaixonaram quando se conheceram, como suspeitavam desde o início, muito menos que eram feitos um para o outro desde que nasceram. Foram necessários cinquenta anos para perceberem que nasceram a imperfeição da compatibilidade.

Ele era a peça errada no quebra-cabeça dela. Ela era a luva direita na mão esquerda dele. Ela era a xicara para canhoto da mão destra dele. Ele era a fita k7 de música brega em meio a coleção bem arrumada de hinos dela. Ele era, e sempre fora, o silêncio que quebrava as músicas dela. Ela era, e sempre fora, a música que arranhava o silêncio dele. Ela era mãos infantis. Ele era infantil como um todo.

Nasceram, enfim, em uma total não sintonia.

Foi necessário que chegassem as bodas de ouro para que eles se dessem conta, também, que o amor dos velhos é o amor telepático. Aquele que não precisa mais ser dito, mas que está em cada ato memorial, mas que mesmo assim, mesmo sem necessidade de virar tato, ele toca os ouvidos.
O amor dos velhos é quando ele aponta, com a cabeça inclinada, a peça que falta para o esboço se tornar jardim. É quando ela, ao acordar, troca as luvas de lavar a pia por novas, uma para cada mão. É quando ela o ensina a ser ambidestro. É quando um dos dois dá o tom para o outro preencher com letra. O amor dos velhos, o amor telepático, é quando os silêncios são só para quem vê, pois neles, tudo o que foi dito, está sendo redito, em cada olhar, em cada suspiro, é quando a música é cantada pelos dois, mesmo calados.

O amor dos jovens morre e em seu testamento ele escolheu ser cremado, para não sobrar nada e mesmo as cinzas serem jogadas no espaço.

O amor dos velhos sabe dos fatos passados, sabe dos nascimentos prematuros, das complicações de parto e sabe que havia de ter sido assim, para que jamais fosse cremado, mas sim, sempre, fogo.

O amor telepático é quando faltam palavras tais como “início” (mesmo que por Alzheimer perguntar: “desde quando te amo?”).

(mesmo que sob o efeito do amor crer-se em sintonia sã)